terça-feira, 18 de março de 2014

Não é um relato de parto... mas é um relato sobre a vida

Há meses venho repetindo para mim mesma: escreva, coloque tudo no papel, escreva que vai ajudar a passar... Mas não tinha conseguido ainda “tempo”- físico, mental, emocional, interno... – para sentar e escrever. E me perguntava também: passar o que? O que é que tem que passar? O que é que essa história me causa? Parece que não conseguia nem mesmo nomear o que sentia... Mas sabia que não era bom, que doía, e que vinha acompanhado de uma angústia bem profunda.

Minha bebê, Maria Flor, está e esteve sempre, desde seu nascimento (e antes!!), aqui conosco, linda (demais!!), saudável, alegre, um bebê feliz e delicioso, e algumas pessoas mais próximas, percebendo minha mágoa (??) e angústia me diziam, carinhosamente, para olhar para ela e pensar apenas nisso, nesse presente MARAVILHOSO que eu tinha ganhado, na felicidade de estar com ela. Nada mais deveria importar, não é mesmo? E, de verdade, eu nunca imaginei ter uma bebê tão delícia! Tão linda, tão gostosa de viver! Como sou eternamente grata por isso! E também me sinto parte disso, sinto que ela também é assim, feliz, alegre, saudável, deliciosa por minha causa, pela mãe e pessoa que sou quando estou com ela e por ela. Mas, não, isso não é só o que importa, ou não é tudo... Por que pensar e escrever tudo isso? Não seria mais simples viver sem a consciência de tudo isso? Talvez sim, como o fazem milhares de mulheres. Mas há muitos anos eu escolhi o caminho da consciência em contraposição ao da alienação. Desde então, percebo que este é um caminho sem volta.. não é possível retornar à alienação...

Costumo dizer, talvez por ser psicóloga, talvez só por ser gente mesmo, que há coisas que são da ordem do indizível: sente-se, vive-se, mas não se diz porque não é dizível, as palavras não alcançam, são experiências de um outro registro. E acredito que isso que eu tanto quero escrever é, em grande parte, dessa ordem do indizível. Então, estou aqui, finalmente, tentando dar conta da parte “dizível” de tudo isso, a partir daquela outra parte que continua aqui dentro, e que aqui deve permanecer...

Essa história não começa em fevereiro de 2011, quando descobri a gravidez da minha pequena. Não, não, ela começa muito antes, não sei precisar quando. Talvez comece quando eu mesma nasci, em 1977, de um parto “normal”, em que minha mãe e eu sofremos uma série de violências, embora até há poucos meses eu não as nomeasse dessa forma: episiotomia de rotina, pressão na barriga, fórceps alto, etc., etc., etc. É, deve começar lá, porque desde que me lembro, sempre que pensei em parto, o que imaginava para mim era um parto normal (era a única nomenclatura que eu conhecia), e ao mesmo tempo, sempre que eu falava isso, minha mãe me dizia que não entendia como eu poderia querer passar por tudo aquilo que ela passou, sendo hoje a cesariana tão acessível a qualquer um que tenha convênio – assim pensava minha mãe, que só conhecia aquele “parto normal”. O estranho era que por mais que ela me dissesse isso repetidas vezes e que eu percebesse o quanto ela sofreu no meu nascimento, não fazia o menor sentido para mim imaginar que o bebê que um dia eu teria deveria nascer por meio de uma cirurgia. Sempre, sempre, sempre senti que o nascimento deveria ser algo natural, que mulheres dão à luz bebês desde sempre, e que a cirurgia cesariana serviria apenas se houvesse algum risco REAL para a mãe ou o bebê. Eu não tinha conhecimento científico nenhum acerca de nada disso. Ainda não era psicóloga, ainda não era educadora, nem trabalhava com gestantes. Apenas sentia e pensava dessa forma. Assim como pensava que, uma vez que eu quisesse um parto normal, assim o seria. Não parecia óbvio e natural? Parecia...

Ao longo da faculdade de psicologia, meus estudos apenas corroboraram para este sentimento. Seria sempre melhor que o bebê pudesse nascer a seu tempo, no momento em que estivesse pronto para viver o nascimento. Winnicott, pediatra e psicanalista inglês cuja teoria norteia meu trabalho, escreveu muito sobre o vínculo mãe-bebê, sobre a importância dessa relação para o desenvolvimento da criança, para a constituição do ser, sobre o preparo emocional que a mulher naturalmente vive durante a gestação – “se tudo corre bem”, como ele costumava frisar... – para receber o bebê e dele cuidar, “misturando-se” com ele para compreender e atender a suas necessidades no início da vida “aqui fora”. E isso tudo sempre fez – e faz – muito sentido para mim. A cirurgia continuava parecendo completamente não natural, um recurso apenas quando realmente necessário. Pensava: meu bebê vai nascer quando quiser e puder nascer...

A gravidez demorou um pouco mais para acontecer na minha vida do que eu imaginava, assim como outras coisas que nunca imaginei aconteceram. Vivi o término de um casamento que sempre imaginei interminável (???), passei por uma transformação essencial na minha vida, em mim mesma, derrubando tabus, revendo planos, prioridades, literalmente me encontrando em mim, talvez pela primeira vez. A criança que nunca deu trabalho (nem quando bebê!), a melhor aluna da turma (de quase todas as turmas...), a adolescente não rebelde, a mulher com um casamento perfeito, tudo isso deixou de ter tanto valor e passou a parecer muito artificial ou superficial. Por baixo disso, onde estava eu? Bom, foi aí que comecei a me encontrar... E continuo procurando! Rsrsrs...

Morar sozinha pela primeira vez, lidar sozinha com a casa, as contas, o trabalho, as dívidas, os cuidados comigo e com meu espaço e com os olhares surpresos e por vezes meio tortos da família e de algumas pessoas próximas. O que será que aconteceu com ela? O que vai fazer da vida dela? Não sabia bem a resposta, e embora pareça estranho, era também muito bom não saber esta resposta pela primeira vez na vida, e poder traçar um caminho novo, autêntico, com as minhas mãos.

Logo que fui morar sozinha, comprei minha cachorrinha! Luna, minha “bebê cão”, há tantos anos desejada! Companheira, linda, fofa, arteira. Sempre comigo, nessa nova “empreitada de vida”. Não poderia falar desse processo de gestar a mim e a minha bebê sem falar da pequena “Luna Maria”!

Encontrei meu amor. Nos encontramos. Nunca imaginei que seria possível ficarmos juntos, nós dois já com tantas histórias e tanto lastro, como seria possível? Com tantos julgamentos, acusações, preconceitos... Mas a gente fez acontecer, a gente quis que acontecesse, e começamos a construção de uma nova história, da nossa história, permeada de muitas dificuldades, mas recheada de poesia, música, amor e paixão. De encontro de almas. Meu “companheiro de vida” estava comigo, depois de muito tumulto, muita angústia e sofrimento. Estávamos juntos e era pra valer... Mas será que cabia um bebê, um filho nessa relação? Ele já tinha dois, um casal lindo, do casamento anterior, e adotou a Luna comigo!! Teria mais um? Sempre me disse que o que mais amava na vida, de tudo, de tudo, de tudo era ser pai. E que adoraria ter muitos filhos se pudesse. Então, parecia que sim, cabia um bebê nas nossas vidas...

E eu parecia pronta. Isso existe?? Provavelmente não, mas me sentia assim. E deixei ou deixamos que acontecesse. E aconteceu. Muita gente hoje me diz que foi na hora certa, ainda bem que não foi antes, etc., etc., e entendo bem isso, embora não saiba também se existe uma hora certa. Mas que bom que foi agora! Com certeza!

A descoberta foi do modo “clássico”: menstruação atrasada, TPM que não passava, achei melhor verificar. Teste de farmácia: mega positivo!!! Choro, riso, explosão de felicidade. Mas era melhor conferir, né? As três horas mais longas da minha vida foram as de espera pelo resultado do Beta HCG no hospital, no dia seguinte ao teste de farmácia. Nós dois juntos, tentando fazer o tempo passar mais depressa, até que a confirmação veio: estávamos gravidíssimos de 5 semanas! Esta também é uma experiência da ordem do indizível: por mais que eu tente, palavras não vão expressar o que senti naquele dia...

Neste período, estava iniciando um novo desafio profissional: trabalhar com gestantes, em um grupo educativo, numa perspectiva de empoderamento da mulher, facilitação do acesso à informação de qualidade, valorização do parto humanizado, em suma, promoção dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres gestantes. Até então, vinha trabalhando na mesma organização com a promoção de direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes. Outras educadoras trabalhavam com as gestantes, mas eu sempre desejei desenvolver este trabalho também. E em 2011 surgiu a oportunidade. Agarrei, aprofundei os estudos que já vinha fazendo, e todas aquelas informações e o contato com profissionais ligadas à humanização do parto, mais a vivência concomitante da minha própria gravidez foram abrindo um novo mundo para mim. Novo, mas não tão novo assim, porque na verdade, vinha ao encontro dos meus valores éticos, do que entendo por direitos humanos, por direitos da mulher, por saúde, cidadania... E vinha ao encontro de como eu sempre havia imaginado que deveria ser um parto: antes de qualquer outra coisa, com respeito à mulher e à criança, e ao tempo dessa dupla.

Eu já tinha uma médica ginecologista obstetra há alguns anos. Gostava muito dela, sentia-me sempre muito bem acolhida, ouvida, tinha minhas dúvidas esclarecidas. Ela tinha feito dois partos de uma amiga querida, e embora tivessem sido duas cesáreas, eu sabia que ela também fazia “partos normais”, pois já tinha conversado com outras pacientes na recepção e ela tinha dito que fazia e que o meu “poderia ser normal sim, claro, se tudo corresse bem”. Então, pra que trocar de médico? Se tudo corresse bem, eu teria meu parto normal, como sempre achei que deveria ser... Precisava não engordar demais, para evitar a diabetes gestacional e a pressão alta, e isso era uma grande preocupação, pois já engravidei com 20Kg acima do meu peso ideal. Era uma gestante obesa (isso dói!), e inchei muito (MUITO!!!)  no último mês da gravidez. Cheguei a engordar 4 Kg em uma semana!! E tinha hipotireoidismo – na verdade, desde os 22 anos, que controlei durante toda a gravidez com a G.O. e minha endocrinologista, com exames mensais, e que esteve sempre equilibrado. Voltarei a este capítulo daqui a pouco, ele é crucial nessa história toda...

Descrever tudo que se passa durante a gravidez é impossível, até mesmo num livro, não é mesmo? Posso dizer que vivi intensamente cada momento, curti elaborar o enxoval com minha mãe, ajudar a escolher cores, tecidos, bordar. Escolher móveis e decorações com meu marido, que também curtiu muito tudo comigo, e me dizia todos os dias o quanto eu estava linda grávida e o quanto me amava e amava ter este bebê comigo. Vibrei ao saber que era uma menina, a menina que sempre sonhei ter, embora, confesso, depois de estar grávida, isso tinha diminuído muito de importância. Fosse menino ou menina, eu estava e continuaria mega feliz.

Esperei ansiosamente a barriga crescer e aparecer!! Amava aquela barriga com todas as minhas forças!! Adorava exibi-la, e fazia o possível para isso, como quem diz: “olha como eu estou feliz!!”. Estava feliz, tranquila, serena, sem ansiedade. Curtia minha bebê dentro de mim, aquela coisa mágica de ter uma outra pessoa dentro de você, se formando a partir de você, e mais, a partir de alguém que se ama muito. Mágico, sublime... indizível de novo.

Não curti apenas as coisas “fru fru” da gestação, embora seja confessa, amo decoração, amei viajar ao exterior com minha mãe para comprar roupinhas e afins, amei ajudar a bordar o enxoval e criar todo o tema do quartinho da minha pequena. Preparar o ninho, dar a ele a nossa cara e não a de uma cena de quarto de revista, era sim muito importante pra mim. Mas não era só isso... Lia muito, participei de alguns encontros para gestantes (deveria ter ido a muito mais), passei a fazer parte de uma lista de e-mails de mulheres gestantes, tentantes e mães que trocam milhares de informações sempre pela promoção de um parto humanizado, pelo empoderamento da mulher, por uma maternidade plena e consciente. Entrei na lista a convite da minha professora de yoga, um encontro mais que feliz na minha vida. As aulas de yoga e a prática da yoga em casa eram um momento sagrado, de encontro com minha bebê, com meu corpo, com outras gestantes e de preparação para o parto. Sim, eu achava que estava me preparando para o parto normal, se possível, natural, agora que já conhecia bem a diferença entre as duas formas de parir. Fazia os exercícios, cuidava da minha respiração, pensava na minha bebê. Achava que estava cuidando muito bem de tudo.

Minha gravidez foi muito celebrada, no melhor sentido que esta palavra pode ter. Minha família , pais, irmão, cunhada, tios, amigos todos viviam com muita alegria aquele momento, curtiam conosco a barriga, nossa felicidade, nossas escolhas. A gravidez parecia um portal: era como se nossa história, minha e do Zé, tivesse conseguido chegar a um ponto que fechava uma era e iniciava outra, ainda mais intensa, mas também mais serena.  A gravidez era resultado de um amor muito vivido, muito intenso. E isso era visível e também celebrado. Celebrávamos nós, celebrávamos todos.

Eu não tinha pressa. Aquela ansiedade do final da gestação não chegou até mim. Curtia estar com a bebê ali dentro e esperar que ela chegasse quando tivesse que chegar. As pessoas perguntavam e estranhavam minha tranquilidade. Ela mexia super pouco, e isso às vezes me preocupava, mas com o tempo fui entendendo que ela era assim mais quietinha, e que o que importava era que estava bem, que nós duas estávamos bem. E eu curtia cada pulinho ou revirada que eu sentia, e estava bom assim.

Eu já havia conversado sobre o parto com minha médica. Sempre deixei muito claro para ela que minha vontade era o parto normal e que não estava disposta a abrir mão disso por qualquer razão que não fosse muito importante. Ela sempre me disse que não haveria porque não ser normal se tudo continuasse como estava. Numa determinada consulta, eu disse que achava que ela não nasceria antes das 40 semanas, que ela passaria um pouco – eu sentia isso mesmo, muito – e ela me disse que tudo bem, poderíamos esperar até 41 semanas, depois disso ela  - a médica – teria um infarto de nervoso! Mas eu não li esta fala como deveria, e fiquei tranquila. Ela iria esperar...

Em outra consulta falei sobre episiotomia e analgesia. Mais sinais aos quais não dei a devida importância: ela disse que sem episio poderia ser pior, era muito raro a mulher que não tinha laceração (e eu já sabia que a taxa era de apenas 15%...), e que a analgesia dependeria de mim, mas que não era necessário sentir tanta dor. Sinais... Mas eu não li como deveria ler...

Hoje, muito recentemente, entendi que eu fui um tanto onipotente. Imaginei que “driblaria” qualquer tentativa da médica de me desviar do meu objetivo. Só avisaria do trabalho de parto na fase ativa (tinha ido ao encontro que falava das fases do parto e meu marido, que também participou, estava de acordo, agora mais esclarecido e tranquilizado com as informações). Iria ao hospital também apenas com o trabalho de parto já “engrenadíssimo”. Não haveria o risco de ouvir que teria que fazer uma cesárea por falta de dilatação, depois de ter esperado apenas 5 horas em TP. Na minha cabeça tudo parecia se encaixar, e eu acreditava mesmo, de verdade, que eu conseguiria... Trocar de equipe para quê? Eu confiava nela, muito. Em sua capacidade técnica, em seu cuidado comigo. E meu marido também gostava muito dela. Estávamos nos preparando para pagar a parte que o convênio não reembolsaria (sim, foi tudo particular, com reembolso de parte dos custos), e estávamos bastante tranquilos. Até que...

Minha DPP (Data Prevista para Parto) era 20 de outubro de 2011, quando completaria 40 semanas de gestação. No sábado anterior a esta data, dia 15 de outubro, fui a minha consulta de pré natal com minha G.O, que agora já eram semanais. E então veio a “notícia”: eu não poderia deixar passar das 40 semanas, pois ela não associaria dois fatores de risco. Como assim dois fatores de risco, perguntei? Não tenho diabetes, não tenho pré eclampsia, estou bem (apesar que com muito peso), a bebê está bem. Quais são estes tais fatores de risco??? Pós-datismo, ou seja, passar de 40 semanas, e hipotireoidismo... Lembra daquele capítulo? Pois é... o que para mim era apenas um quadro super familiar, com o qual eu vivia há mais de 12 anos, e que controlei religiosamente todos os meses durante a gestação, era o tal segundo fator de risco. E, segundo minha médica, associar dois fatores de risco não era indicado. A bebê teria que nascer até dia 20 de outubro, não havia outra possibilidade. Eu não tinha nem sinal de trabalho de parto, não tinha perdido o tampão, não tinha dilatação nem contração nenhuma. Mas minha bebê tinha que nascer até dia 20 de outubro... essa era a sentença.

Questionei porque ela não tinha me dito isso antes e ela, surpresa, me disse: “mas eu não te falei sobre isso? Mil desculpas Jaque, eu realmente achei que havia te dito”. Eu insisti, lembrando que muito pelo contrário, ela tinha me dito que poderíamos esperar até 41 semanas, e que eu me lembrava exatamente disso por causa da “brincadeira” que ela tinha feito, dizendo que se passasse de 41  ela mesma teria um infarto. E ela novamente se desculpou. Na consulta mesmo já ligou para o hospital para agendar uma sala de pré-parto e o centro cirúrgico, “só por garantia”. E me disse que ainda poderíamos induzir, antes de acabar na cirurgia.

Neste dia eu havia ido sozinha à consulta. O Zé estava viajando muito a trabalho, e estava fora naquele sábado, não me lembro porque. Mas eu estava bem e fui super bem à consulta. Até o final da gestação eu vinha fazendo de tudo, mesmo contrariando a opinião de alguns que achavam que eu deveria parar. Era a primeira consulta a que eu ia de taxi, porque finalmente parei de dirigir. Enfim... Saí do consultório com uma carta de internação nas mãos, tonta, triste, arrasada... Chorei, chorei, chorei... muito... Liguei para o Zé, compartilhei com ele, e sei que ele também ficou triste, principalmente por me amar muito e notar a minha tristeza. Contei para minha mãe também, que, penso eu, pela primeira vez entendeu o quanto “poder parir” era importante para mim, e o quanto eu estava desapontada, magoada, arrasada com a possibilidade de que isso não me fosse permitido. Me sentia culpada, culpada por ter hipotireoidismo (!!!!), culpada por estar gorda, culpada por não saber se o que a médica estava dizendo era verdadeiro ou não, se era baseado em evidências científicas ou apenas mais um protocolo. Culpada por não ter lido os sinais...

Eu sentia que minha bebê não nasceria antes do dia 20... eu sentia que ela ficaria mais um pouquinho ali dentro, e até aquele dia isso estava muito tranquilo para mim. Então comecei a pedir que ela nascesse... comecei a conversar com ela e dizer que estávamos prontos para que ela chegasse, que ela poderia sair que ali fora também seria muito gostoso com mamãe e papai, vovós e vovôs, que eu cuidaria de tudo para que ela ficasse bem e feliz. Intensifiquei os exercícios de yoga, pulava na bola todo dia, muitas vezes por dia.

Conversei com uma amiga, militante da humanização do parto, e pedi socorro. Senti que ela achou estranha a fala da minha médica, mas foi super cuidadosa em não questionar minha decisão de ficar com ela (àquela altura, eu não tinha forças para encarar tudo e todos e trocar de equipe...). Ela então me indicou uma acupunturista, especializada em gestantes, que poderia me ajudar a estimular o início do TP. Na segunda liguei e agendei para a terça feira, pois não tinha horário antes. Minha mãe chegou, vindo do interior, pois ficaria comigo nos primeiros 15 dias. Na terça fomos à consulta com a acupunturista, eu, minha mãe e meu marido. Fiquei uma hora com ela. Conversamos, ela fez mocha bustão e acupuntura, me deu um floral, e indicou que eu tomasse um chá de ervas chinesas. Fomos até a Liberdade comprar o tal chá, que só tinha por encomenda, e só ficou pronto no dia seguinte. Tomei 3 litros do tal chá, conforme a recomendação. Pedia o tempo todo para minha bebê nascer. Mas nem sinal... Zé e minha mãe me acompanharam e me apoiaram em tudo, ainda que achassem um tanto maluco tudo aquilo (3 litros de chá chinês?? Oi?? Rsrsrs).

Dia 20 de outubro de 2011: acordei super cedo, bem disposta, com as malas prontas e rumamos para o Hospital e Maternidade São Luiz. Eu tinha visitado o hospital para conhecer a maternidade há umas duas semanas, então sabia como proceder. Depois das milhares de papeladas assinadas, passei na triagem com a enfermagem – uma enfermeira doce e acolhedora  (ufa!) – e fomos para a sala de pré-parto para a indução. Sob orientação da médica (por carta), introduziram a medicação na vagina. Isso seria feito a cada 6 horas, para estimular o início do TP. Me alimentei, assisti a TV, caminhei, caminhei, pulei muito na bola, tomei banho quente, cantei... Introduziram o segundo comprimido, e a enfermeira disse que retiraria o tampão para estimular mais. Doeu. Bastante. Mas não tinha problema, faria o que fosse preciso para não precisar da cirurgia. Mal sabia eu que o que era preciso era sair correndo dali, e só voltar quando minha bebê quisesse mesmo nascer...

Ao longo do dia, uma das salas Delivery, como chamam as salas para parto normal, foi utilizada uma ou duas vezes no máximo. Havia apenas duas dessas, contra mais de uma dezena de centros cirúrgicos, retrato claro do índice de partos normais ou naturais que aconteciam ali. Eu facilmente poderia utilizar uma das deliverys, não haveria problema, mas o problema não era esse...

À noite, eu tinha 1 dedo de dilatação, na verdade, forçado pela enfermeira. Minha médica chegou. Com cara de compaixão (??), chateada por eu estar chateada, me dizia para ficar bem, que eu tinha feito tudo que podia, mas que talvez não fosse possível. “Combinamos” de aguardar mais duas horas. Quando ela voltou, a situação era a mesma. “Vamos fazer a cesárea? É arriscado esperar...”, ela me perguntou, como se eu tivesse condição de responder algo diferente de sim... Sim, eu disse, já que não parecia haver outro jeito. Eu não sentia que tinha outro jeito, eu não me permiti dizer NÃO, eu não vou para a cesárea, eu vou esperar minha filha nascer, por mais surreal que tudo aquilo parecesse, eu não consegui dizer não. Eu permiti que a médica a fizesse nascer na noite daquele dia 20 de outubro de 2011.

Chorei, mas “me recompus”. Minha filha iria chegar, e isso era a maior felicidade do mundo. Eu estava pronta para ela. Muito pronta. E iria ajudá-la a estar pronta para este mundo também, embora um pouco antes do que ela talvez gostaria. Minha mãe já estava no hospital, meu irmão e cunhada a caminho. Me despedi da minha mãe, tadinha, aflita lá fora, sem poder estar comigo, e querendo muito estar, mas apenas um acompanhante poderia ficar. E meu amor, Zé, passou o dia todo ao meu lado, como passou a gestação toda a meu lado, me apoiando em tudo, dividindo tudo, vivendo e curtindo tudo. Ele foi então se paramentar para continuar ao meu lado, agora no centro cirúrgico.

Eu não tinha medo nenhum da cirurgia em si. Já havia passado por 3 cirurgias, sempre com ótimas recuperações e sem nenhuma intercorrência. Temia apenas pela bebê, porque não era a hora dela, porque temia os efeitos da anestesia nela e qualquer outra complicação para ela. Mas agora já tínhamos “decidido” que seria a hora dela, e foi... Pedi muito a minha médica que orientasse a enfermagem a levar logo a bebê para o meu quarto, que não queria ela longe de mim por horas e horas. Quase implorei, e ela fez o que pedi. Eu não tinha contratado pediatra, embora tenha pesquisado alguns, feito uma consulta, para evitar algumas intervenções protocolares com a bebê também (colírio, aspirações, etc.), mas não foi o suficiente de informação ou sei lá do que para que eu contratasse o pediatra particular. Então, sim, a bebê passou pelos procedimentos “de rotina” ao nascer...

A equipe era gentil, animada, “cuidadosa”. Fui muito bem tratada, no que se pode considerar ser bem tratada em uma cirurgia, não fui amarrada, nem nada parecido. Na hora da anestesia, único momento de dor física, minha médica segurou minha mão e conversou comigo. Naquele momento chorei de novo, usando o disfarce da dor física, mas chorei por uma dor na alma, por estar passando por aquilo que nunca na minha vida havia considerado natural, e provavelmente por perceber que eu poderia ter evitado estar lá. O Zé pôde entrar e logo se pôs ao meu lado, me beijou, visivelmente emocionado, ansioso, lindo. Logo eu não sentia mais nada da cintura para baixo, e não via nada também...

Não senti minha filha nascer, não da forma como eu esperava sentir. Senti mexerem em minha barriga, me abrirem, mas tudo muito adormecido, e um pouco “grotesco” eu diria... . A sensação era: “minha filha está nascendo, e eu não tenho participação nenhuma nisso”. Tudo isso, esta frase, dói muito, é como uma tonelada em minha cabeça...E ouvi o Zé narrando a retirada dela, a médica dizendo como ela era cabeluda, e ele dizendo que estava saindo uma peruca da minha barriga!! Maria Flor chegou!! Foi nascida por nós, eu e Zé, que autorizamos a cirurgia (essa foi nossa participação...) e a equipe médica que conseguimos escolher naquele momento. Era linda! Cabeluda, rosadinha, bochechuda. Uma bebê linda!! Depois que a beijamos, a olhamos, ela foi passar pelos procedimentos com o pediatra de plantão, ali dentro mesmo. Teve Apgar 9/10. Enquanto isso eu era costurada pelas médicas, e o Zé acompanhava a bebê e a mim, se dividindo em seu amor gigante.

Me lembro que logo isso terminou. Eu estava fechada, me sentia relativamente bem fisicamente, ainda anestesiada, um tanto passada. As médicas se despediram, avisando que voltariam no dia seguinte para me ver, e eu agradeci. E então uma enfermeira trouxe Maria Flor para meus braços, ali mesmo no centro cirúrgico, e perguntou se eu queria amamentar. Agradeci, disse que sim, e logo a colocamos no peito. A enfermeira me auxiliou, com muito cuidado, e ficamos ali por uns 30 minutos. Mágicos 30 minutos. Como agradeço por isso... Depois fui para a sala de recuperação, onde fiquei mais meia hora, e logo subi ao quarto, onde logo chegaram minha mãe, meu irmão e minha cunhada, junto com o Zé. Tinham assistido e gravado o banho da bebê e estavam todos emocionados. Logo ela chegou. Esse pedido tinha sido atendido. Logo Maria Flor estava ali, nos meus braços novamente, quietinha, adormecida, e eu não tenho mesmo palavras que descrevam a felicidade daquele momento...

Ficamos duas noites no hospital, junto com nossa bebê, recebendo amigos e familiares, muito bem vindos. Lidamos com a inconveniência das enfermeiras noturnas, que insistiam que eu precisava descansar e que seria melhor levar Maria Flor ao berçário por algumas horas, até que desistiram quando eu disse que sem ela não descansava nada, e Zé bateu o pé que ela deveria ficar no quarto conosco, e se precisássemos, pediríamos ajuda. Lidamos também com uma pediatra infeliz, inadequada, prepotente, que queria inserir complemento ali mesmo, antes do meu leite descer, porque afinal de contas, eu não conseguiria mesmo amamentar, pois tinha feito uma cirurgia de redução de mamas com 18 anos. Tudo isso dito na lata, interrompendo meu jantar, diante das visitas (que, por sorte, eram meu irmão e minha cunhada). Acho que a coloquei pra correr de lá, não lembro exatamente, porque tive tanto ódio dela, que fiquei meio cega! E continuei deixando que Maria Flor sugasse muito, a vontade, o quanto quisesse, até que meu leite desceu. Ainda que logo eu fosse ficar sabendo que meu leite não saia na quantidade necessária para ela – por causa da cirurgia – naquele momento eu precisava tentar e precisava deixar meu leite descer, ainda mais tendo passado por uma cesárea, o que não contribuía em nada para que isso acontecesse mais rapidamente...

A chegada em casa nos trouxe tranquilidade e paz. Estávamos no nosso cantinho, que tínhamos preparado para receber nossa pequena, e onde nos sentíamos bem. Zé viajou a trabalho no mesmo dia, com o coração ardendo de angustia por nos deixar, mas ficamos bem, na companhia e sob os cuidados de minha mãe amada, a avó mais linda e coruja que eu conheço nesse mundo. Tudo correu muito tranquilo, de dia, de noite, acompanhava o ritmo da bebê, dormia quando ela dormia, cuidava dela quando acordava a noite, amamentava, curtia cada barulhinho, cada expressão. Maria Flor foi e é uma bebê muito tranquila, e acredito que além da personalidade que ela já trouxe consigo, muito disso tem relação com a forma como foi recebida por mim e pelo Zé. Eu estava completamente mãe, à disposição, entregue, e nada disso me causava qualquer sofrimento ou dor. Ficar acordada? Tudo bem. Seios rachados? Faz parte, a gente cuida. Choro? Estamos aqui para acolher. Não, não acho que foi tudo simples ou super perfeito. Mas foi como tinha que ser e foi bom demais, sabe?

Maria Flor tem hoje 8 meses. Nesse tempo, vivo com ela a maior parte de todos os meus dias. Resolvemos juntos que eu reduziria o ritmo de trabalho no primeiro ano de vida dela para evitarmos escolinha ou babá, e estamos lutando para manter assim. Trabalho pouco, quando posso levo ela comigo, e já virou tradição: todo mundo espera pela Maria Flor nas instituições em que presto consultoria ou desenvolvo algum trabalho. Contamos com dois anjinhos, a Val, que trabalha comigo há mais de 10 anos como diarista, e que acabou virando a babá por algumas horas da Maria Flor nos dois dias da semana em que está conosco. E a Nil, minha comadre linda (Rafa, seu filho é meu afilhado amado), que fica com a pequena as sextas-feiras para eu atender no consultório em Santo André, e cuida dela como se fosse sua bebê. No mais, eu e Zé nos revezamos, e ela curte muito todo este cuidado.

Tenho vivido intensamente e deliciosamente tudo que podemos viver juntas. Saímos para passear, visitamos pessoas queridas, vamos ao cinema, a baby yoga (ela já é veterana!!!), viajamos para a casa dos meus pais, e agora somos parte do Materna em Canto, um sonho que eu nutri desde muito antes de pensar em engravidar, e que acabou se tornando possível. Sling+mochila+bebê= passeio garantido, seja de carro ou de metrô! Me delicio a cada descoberta dela, curto cada novo balbucio, a carinha de arteira, o jeito como ela explora tudo ao seu redor. E AMO de paixão quando só o meu colo, e nada mais, a tranquiliza na hora do soninho ou do chamego gratuito... Eu disse um dia para o Zé que um dia eu teria um bebê que eu não precisaria entregar a ninguém quando estivesse chorando ou com sono, mas que seria entregue a mim para ser ninado... Maria Flor chegou, e nos divertimos ao lembrar dessa fala. Aliás, curtimos juntos todas estas coisas maravilhosas e as dificuldades também. Zé me faz ver tudo com ainda mais intensidade, sensibilidade. Percebe as pequenas coisas e suas belezas. É meu companheiro de vida e um pai pra vida da Maria Flor...

Com tudo isso, essa dor ainda dói aqui dentro. Vivo a maternidade plenamente, mas não vivi o nascimento da minha filha com esta plenitude... Nesses 8 meses, me informei ainda mais, passei a defender mais publicamente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, a militar pelo parto humanizado, a buscar mais informação e a compartilhar com amigas gestantes. Tenho a sensação de que preciso fazer tudo que for possível, tudo que estiver ao meu alcance para que um dia nenhuma mulher precise mais passar por uma “desnecesárea”, como hoje eu consigo chamar a cesárea pela qual passei. Sim, uma cesárea desnecessária, eletiva, que não precisava ter marcado a minha vida e a da minha filha. Mas eu não consegui lutar contra o sistema, e me enganei imaginando que estava lutando. Quero que minha filha, se um dia decidir e puder ser mãe, possa escolher, sendo senhora do próprio corpo...

Hoje entendo que para ter um parto de fato humanizado, aqui em São Paulo, e no Brasil, a gente tem que estar com um dos 5 ou 6 médicos realmente humanizados, ou com uma equipe de parteira//obstetriz, ou em uma casa de parto. Fora isso, tudo é um risco, e tudo pode não ser como se imagina. Entendo que o empoderamento é longo, árduo, envolve bancar uma série de coisas diante de pessoas que muitas vezes nos amam, mas não nos compreendem. Entre um milhão de outras coisas que não cabem aqui...

A Marcha do Parto em Casa, no mês passado, mexeu demais comigo. Na verdade, toda a mobilização em torno do assunto, que culminou com a marcha, de que eu não pude participar, mas que divulguei ao máximo e apoio completamente. O direito de escolher precisa voltar para as mãos das mulheres, que precisam perceber que apenas acham que escolhem, mas que podem escolher de fato, desde que lutem muito, e escolham as pessoas certas para estarem ao seu lado na hora “p”... Eu achei que tinha escolhido. Mas não cuidei da minha escolha. E, ao mesmo tempo, a gente não deveria ter que cuidar tanto disso, se nossa cultura não delegasse o cuidado com nossos corpos à medicina, pura e simplesmente, como se fôssemos incapazes de o fazer. Poder escolher deveria ser o natural. Fazer uma cesariana não deveria ser escolha, mas necessidade em casos de real necessidade. Parto normal sem intervenções desnecessárias também deveriam ser a rotina. As intervenções também são apenas para os casos de necessidade, nunca deveriam ter se tornado protocolo. Mas se tornaram. E eu caí no protocolo da cesariana...

Não caí ingenuamente. Não, dizer isso seria simplista e injusto. Caí por uma série de razões, talvez já apresentadas aqui, mas que envolvem a minha responsabilidade também. Mas não consigo, ao mesmo tempo, deixar de me sentir enganada, por ter sido informada do protocolo 5 dias antes da minha DPP... E ainda preciso me perdoar por isso, por não ter dito não quando fui “convidada” a desistir e a seguir para o centro cirúrgico. Escrever tudo isso faz parte desse processo de me perdoar e de entender. Pelo menos, estou contando com isso...

De verdade, isso não foi um relato de parto, não é mesmo? Não há relato de parto quando seu bebê nasce de cesárea eletiva, e tenho que viver com isso. Ninguém quer ler meu relato de parto, porque não há parto a ser relatado, ponto. O “parto cesárea”, para mim, não é parto. É uma forma cirúrgica de fazer nascer um bebê, sem nenhuma participação da mãe. E isso, repito, para mim, não é parto. Então para que escrever 10 páginas (!!!), se o relato do nascimento da Maria Flor não ocupou mais do que 3 parágrafos?? Não sei bem responder a isso...

Acho que eu queria dizer que eu não queria um parto normal porque é legal dizer isso, porque é “in” ou “cool”, ou pra ser natureba, ou melhor do que ninguém. Mas porque isso estava em mim desde sempre. Desde antes da militância, desde antes da psicologia, antes do trabalho com educação social, desde antes de tudo. Isso sempre foi no que acreditei, e foi o que sonhei. E foi o que não vivi. Assim como minha mãe sofreu uma série de violências no meu nascimento – ainda que ela não soubesse disso e achasse que tinha que ser daquele jeito mesmo, porque para ela um parto normal de um bebê tão grade não tinha como ser diferente -  eu também sofri uma violência, diferente, mas que deixou uma cicatriz bem clara no meu ventre, e uma obscura na minha alma. Sim, me sinto roubada, não só pela médica que me operou (e, de verdade, acho mesmo que ela acredita que fez o melhor por mim), mas por uma cultura que medicaliza e patologiza a vida, que rouba da mulher (e da humanidade)  o poder de escolher entre nascer e morrer, entre como nascer e como morrer... Mas isso é assunto “pra mais de metro”, e acho que vou parando por aqui.

Já li e reli tudo isso mil vezes, e todas as vezes faço algum acréscimo, alguma alteração, mudo frase, troco palavras... Nunca vai estar completo, nunca vai dizer tudo. Mas tem o indizível, né? E tem o leitor, que vai ler como puder ler. Se alguém ler, se chegar até aqui, obrigada por me acompanhar nesse percurso pequeno de uma parte gigantescamente importante na minha vida, que não me traduz, mas que conta um pouquinho de mim.


P.S.: E porque as imagens às vezes nos ajudam muito com o indizível da vida, assim como as poesias...
junho/2012

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